Febres, pandemias e sociedade: o tempo de repensar as vacinas

28 de abril de 2021 5 mins. de leitura
Paulo Saldiva discute a vacinação contra o novo coronavírus

Por Paulo Saldiva*

Desde sempre, as doenças infecciosas são uma importante causa de adoecimento humano. Tucídides, considerado por muitos o pai da História, descreveu com maestria a epidemia que se iniciou no ano 430 a.C. e devastou Atenas aniquilando cerca de um terço da população.

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A doença não foi identificada, mas a descrição detalhada de Tucídides me faz colocar como causas possíveis o tifo exantemático ou talvez a peste bubônica. 

Os médicos foram os primeiros a sucumbir, fazendo as pessoas buscarem a esperança em práticas religiosas diversas. A estrutura social de Atenas pereceu frente à intensidade do adoecimento. 

A população empobreceu a ponto de não conseguir pagar pelas piras onde cremavam os corpos dos falecidos. Gerou-se ódio e postulou-se que a doença fora introduzida deliberadamente pelos Persas. 

A dramática combinação de mortandade, desesperança, ódio, misticismo e xenofobia se repetiu quando aconteceram outras pandemias grandes, como a peste bubônica, a varíola, o cólera-morbo e a influenza.

Basta visitar O Decameron, de Boccacio; Um Diário do Ano da Peste, de Defoe; e A Peste, de Camus. Em suma, tudo o que hoje vivemos já foi experimentado pelos nossos antepassados. A força das pandemias também impulsionou as medidas de saneamento, o aprimoramento das estatísticas vitais e a pesquisa voltadas a vacinas e antimicrobianos.

Como sempre, as vicissitudes do ato de viver impulsionaram a criatividade humana. 

O precursor das vacinas modernas foi Jenner. Ele, ao inocular um vírus da varíola bovina no garoto James Phipps no dia 14 de maio de 1796, protegeu-o do vírus da varíola humana. Abriu-se, então, o caminho para Pasteur, Koch, Sabin e outros gigantes da Ciência que desenvolveram as vacinas que hoje evitam anualmente a mortalidade precoce de milhões de pessoas. 

A covid-19 impôs um novo desafio para a vacinação. A extrema mobilidade global propiciou o rápido espalhamento de um vírus de transmissão interpessoal direta, colocando o mundo de joelhos em poucos meses. A rapidez da disseminação teve como resposta a redução extraordinária do tempo para o desenvolvimento de vacinas. 

Antes da covid-19, o tempo transcorrido entre o isolamento do agente e a condução dos estudos pré-clínicos e clínicos demandavam anos, por vezes mais de uma década. Hoje, graças à evolução da tecnologia biomédica, algumas vacinas chegaram aos testes de fase I e II em meses. 

O tempo de bancada deixou de ser o fator impeditivo para desenvolver vacinas contra agentes pandêmicos. As dificuldades atuais são outras, como a produção, o financiamento, a distribuição e a aplicação em larga escala. 

A montagem de plataformas fabris para produzir os bilhões de doses de vacina necessários para interromper a pandemia é um desafio de enormes proporções. Erguer fábricas não depende de boa vontade, mas sim de financiamento, bem como de quadros técnicos capazes de operar o sistema de produção. A associação entre competência técnica e recursos financeiros não é frequente entre as nações nem será resolvida em curto ou médio prazos (talvez nunca…). 

Em face à capacidade reduzida de produção de doses de vacinas, chega-se obrigatoriamente a um dilema de natureza moral e ética. O notável progresso da tecnologia vacinal será compartilhado entre os grupos que mais deles se beneficiaram ou prioritariamente destinado àqueles que podem pagá-lo? As vacinas serão um instrumento de promoção da igualdade ou ampliarão a desigualdade de acesso à saúde hoje existente? 

A resposta para esse dilema não é fácil, pois depende de visões e princípios que não pertencem exclusivamente ao mundo das Ciências Biomédicas, mas tem morada dominante nas humanidades.

A eficácia das vacinas depende, portanto, não somente da sua capacidade de conferir proteção e imunidade, mas também, e fundamentalmente, de sua aplicação compartilhada. 

Exemplifico: há décadas, o mundo dispõe de vacinas extremamente eficazes contra sarampo e poliomielite, mas, infelizmente, essas doenças ainda circulam em algumas áreas do planeta, notadamente nas regiões mais vulneráveis.

Há também aspectos culturais peculiares de nossa época, como o movimento antivacina, um exemplo de ignorância organizada que se espalhou pelo mundo e que tem sido mais propagado pelas redes sociais, como uma infodemia de grandes proporções.

A junção da Ciência aos Valores Humanos foi capaz de eliminar algumas doenças da face da Terra, como a varíola. Um esforço global coordenado fez a varíola ser erradicada em 1978 e, até onde eu sei, a última vítima da varíola foi a fotógrafa e médica Janet Parker, que trabalhava na Faculdade de Medicina de Birmingham.

Ela não foi vacinada, pois a sua mãe era contra as vacinas.Talvez tenha chegado o tempo de ousarmos. O desafio está colocado. Seria talvez oportuno revisitar as ideias de Elinor Ostrom, prêmio Nobel de Economia em 2009.

Há coisas no mundo que são commodities, e outras que são comuns. Talvez as vacinas um dia possam ser classificadas como um bem comum da humanidade. Podemos nos permitir sonhar?

*Paulo Saldiva é professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

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Esse texto não refletenecessariamente, a opinião do Estadão.

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