As notícias falsas, que se espalham cada vez mais facilmente, estão se tornando um problema para a saúde pública na imunização contra a covid-19
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Por Adriano Aguiar*
Há alguns dias, em um grupo de WhatsApp familiar, uma mensagem me preocupou. Nela, o meu tio, engenheiro e já idoso, dizia que não iria se vacinar contra o novo coronavírus.
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Os filhos, irmãos e sobrinhos, exasperados, tentavam convencê-lo de todas as maneiras, mas ele tinha uma certeza absoluta: as vacinas fazem parte de um projeto arquitetado pelo governo da China para injetar um chip em nosso organismo e, por meio da tecnologia 5G, escravizar toda a população mundial.
De nada adiantou argumentar que a vacina de Oxford não era chinesa. Ele encaminhou para o grupo uma mensagem daquelas que já vêm prontas, com versões em cinco línguas, na qual o suposto plano chinês era explicado minuciosamente.
Dessa forma, sendo psiquiatra, eu fiquei atordoado com a semelhança que aquela mensagem tinha com um delírio esquizofrênico. Havia uma profusão de inferências, associações de ideias e interpretações que careciam de qualquer amparo na realidade, mas constituíam uma arquitetura lógica própria, envolvendo uma conclusão “delirante” de que as vacinas eram parte de um plano de um perseguidor que desejava nos escravizar.
Fiquei me perguntando como era possível que pessoas normais e com alto grau de educação formal tivessem a sua capacidade de julgamento racional sequestrada daquela maneira, a ponto de acreditarem plenamente em uma mensagem que, em um contexto histórico diferente do que estamos vivendo, faria um psiquiatra dificilmente hesitar em diagnosticá-las como portadoras de alguma doença do cérebro.
No famoso livro O gene egoísta, o biólogo Richard Dawkins defende que a dinâmica da evolução natural, descoberta por Darwin, escolhe não propriamente as espécies que irão perdurar, mas sim os genes. Estes seriam a unidade replicadora fundamental da evolução natural. Os indivíduos de cada espécie seriam apenas um veículo para a transmissão dos genes entre as gerações.
No entanto, Dawkins afirma que entre os seres humanos existe outro fator que pode ser ainda mais determinante do que os genes nas transformações evolutivas que ocorrem na nossa espécie. Segundo o biólogo, a transmissão cultural seria análoga à transmissão genética, constituindo um outro vetor na evolução da espécie humana: “a linguagem parece ‘evoluir’ através de meios não genéticos e com uma velocidade que é, em ordem de magnitude, mais rápida do que a evolução genética” (Dawkins, 2007, p. 245).
Assim como a evolução genética tem no gene a sua unidade replicadora, Dawkins defende que a transmissão cultural também teria uma, que ele denominou de “meme”.
Memes são palavras, ideias, frases, imagens, mensagens, músicas ou qualquer outra unidade de informação cultural capazes de se replicar quando se transmitem de um cérebro para outro, do mesmo modo que os genes são replicados ao serem transmitidos de um corpo para outro por meio da reprodução.
Por isso, Dawkins afirma que os memes devem ser compreendidos como estruturas vivas, não apenas metaforicamente: “quando você planta um meme fértil na minha mente, você literalmente parasita o meu cérebro, fazendo dele um veículo para a propagação do meme do mesmo modo que um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira” (Dawkins, 2007, p. 250).
O filósofo e cientista cognitivo americano Daniel Dennett, ao comentar o conceito de meme, usa como ilustração o caso do Dicrocoelium dendriticum, um tipo de parasita que infecta o cérebro de formigas e muda totalmente o comportamento delas. Em vez de voltar ao formigueiro, toda noite o animal infectado vai para a ponta de uma folha de grama e fica parado lá a noite inteira, esperando ser comida por alguma vaca.
Esse comportamento “suicida” da formiga acontece porque o cérebro dela passa a obedecer à necessidade de replicação dos genes do parasita que a infectou, já que a etapa seguinte do ciclo reprodutivo do Dicrocoelium dendriticum acontece no organismo dos bovinos.
Dennett lembra que nos seres humanos existem alguns memes que são capazes de “parasitar” os seus cérebros a ponto de fazê-los também apresentar comportamentos suicidas, contrariando o instinto natural de sobrevivência e replicação dos seus próprios genes. Catolicismo, islamismo, comunismo, capitalismo, justiça e liberdade são alguns exemplos de memes pelos quais milhares de seres humanos se dispuseram a morrer.
O psicanalista francês Jacques Lacan já havia apontado em 1973 que a linguagem “parasita” o ser humano. Mas Dawkins, ao fazer dos memes um conceito da Biologia, definiu-os como uma unidade replicadora “cega” que se realiza fisicamente na estrutura do sistema nervoso central dos indivíduos da nossa espécie e atinge em cheio algumas das noções mais arraigadas no pensamento ocidental desde Descartes: a clivagem entre mente e cérebro, cultura e natureza, humanidades e biologia.
Os biólogos tendiam a pensar que a evolução genética seria a única possível e que o DNA, o único replicador existente na natureza. No entanto, Dawkins mostra que a genética constitui apenas um dos caminhos evolutivos possíveis e que a emergência dos memes, a partir do desenvolvimento da linguagem pela espécie humana, constitui um tipo de evolução própria e muito mais rápida do que a evolução genética.
Nós estamos vivendo atualmente um momento crucial na história da evolução da nossa espécie. Na última década, o surgimento das redes sociais e do WhatsApp constituiu uma nova base material que transformou radicalmente o meio ambiente de replicação dos memes. Nunca antes na história da humanidade, mensagens puderam se espalhar de maneira tão rápida, adquirindo um alcance tão extenso e sem precisar passar por nenhum tipo de filtro ou mediação que apurasse a sua veracidade e a sua virulência. Em outras palavras, a potencialidade que cada meme tem de produzir efeitos saudáveis ou maléficos para a espécie humana.
A tragédia que o Brasil está vivendo hoje, que já matou cerca de 440 mil seres humanos pelo novo coronavírus, está diretamente relacionada à “pandemia memética” que estamos vivendo. Mensagens como aquela que o meu tio enviou têm-se espalhado como um vírus, “infectando” os cérebros de muitos de nós.
Dessa forma, é urgente que a sociedade discuta de maneira muito séria que tipo de “máscaras” e “vacinas” podemos utilizar individual e coletivamente para combater esse outro “vírus” que vem ameaçando o laço social, os fundamentos institucionais das sociedades democráticas e a própria espécie humana. A nossa evolução memética é um problema de saúde pública.
*Adriano Aguiar é psiquiatra, fez mestrado em psicologia na UFF e doutorado em Saúde Coletiva com tese em Neurociências e Psicanálise no Instituto de Medicina Social da UERJ e pela Universidade de Genebra, na Suíça.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.