Uma discussão sobre o “disease mongering”, comportamento que vem se tornando cada vez mais comum no setor da Saúde
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Por Luisa Portugal*
Há quase quatro anos, senti uma dor absurda na coluna. Como aquela já era a terceira vez, percebi logo que não era a coluna, e sim mais uma crise de dor causada por uma pedra que insistia em tentar abandonar meu rim. A dor era intensa, em cólica, que me deixava sem posição, com a impressão de que os órgãos estavam revirados.
Fui logo ao hospital para receber uma medicação na veia, porque, àquela altura, eu já entendia que só lá me sentiria melhor. Fui medicada. Alívio. Fiz uma tomografia que mostrou uma pedra de 7 milímetros. A conversa com o urologista foi a seguinte: “Pedra de 7 mm não sai sozinha, tem que operar. Vamos marcar para amanhã cedo?”.
Eu estava pensando em engravidar, e minha cabeça ferveu com a notícia. “Operar? Isso provavelmente vai adiar minha gravidez.” Questionei se não valeria a pena esperar mais uns dias para ver se ela desceria um pouco. A resposta foi: “Você gosta de sofrer? Vamos logo aliviar essa dor. Já vi muita gente jovem como você morrer por atrasar essa cirurgia, com uma sepse irreversível”. Fui embora com a cirurgia marcada, mas logo que cheguei em casa liguei e cancelei.
Dois dias depois, fiz outro exame com um amigo radiologista que me disse que a pedra havia descido bastante e que tinha 5 milímetros. Perguntei: “Cinco? Me disseram no hospital que tinha 7 mm”. Ele me explicou que os radiologistas colocam no laudo que as pedras têm 7 mm para os planos de saúde autorizarem a cirurgia, mesmo quando o tamanho é menor.
O final da história para mim foi feliz: ela desceu, foi expelida sem cirurgia e engravidei no mês seguinte. Será que a história teria sido a mesma com uma pessoa leiga?
Esse foi um exemplo claro de “disease mongering”, um fenômeno que não é novo. “Mongering” significa comércio ou negociação, então disease mongering nada mais é que a venda de doenças.
Existem pessoas interessadas em vender doenças? Sim, elas sempre existiram, mas agora o ato ganhou outra dimensão. Atualmente, diversos profissionais tentam convencer pessoas saudáveis de que elas estão adoecidas ou muito perto de adoecer e as induzem a usar alguma medicação ou fazer algum exame ou procedimento a fim de detectar precocemente ou tratar aquela doença. Mas qual doença? Na maioria das vezes, não há uma.
Esses profissionais estão por toda parte, principalmente nas redes sociais, usando fotos, pagamento de famosos, manipulação de informações pela oratória e, supostamente, entregando algo que é muito precioso: saúde e bem-estar. Se a saúde vier acompanhada do corpo perfeito, o pacote está completo.
Por que isso acontece? Pelo limitado entendimento do que é saúde, pelo baixo letramento no assunto. A Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) feita em 2003 nos Estados Unidos mostrou que apenas 12% dos adultos tinham letramento proficiente em saúde. Além disso, mais de um terço dos adultos estadunidenses teria dificuldade com tarefas comuns, como seguir instruções de posologia (modo de uso) de um medicamento prescrito. Estudos e dados consistentes com essa abordagem no Brasil ainda são limitados.
Ter um bom letramento em saúde significa ter a capacidade de compreender as informações de saúde necessárias para tomar decisões com segurança. Argumentar. Democratizar as informações. Ter autonomia para decidir os caminhos que se deseja para a própria saúde sem depender do conhecimento único e exclusivo de um profissional que, eventualmente, deseja vender doenças. É absolutamente possível ser um profissional de saúde bem-sucedido sem essa butique.
Para além da discussão das melhorias necessárias na educação básica no Brasil, mudar essa realidade significa ter mais profissionais com habilidade na arte de se comunicar, que consigam transformar informações científicas e baseadas em evidências em uma linguagem simples, acessível e de fácil entendimento, para que as pessoas consigam fazer escolhas responsáveis em seus cuidados de saúde.
Se fiscalização ou regulação parece algo impossível no Brasil, imagine a fiscalização dos profissionais que insistem em “disfarçar as evidências”, como no clássico sertanejo.
Detalhe: mesmo que você esteja pensando que é bem letrado, saiba que ainda assim pode enfrentar muitas dificuldades. Esse entendimento depende do contexto, ou seja, se você precisa interpretar riscos para tomar uma decisão sobre sua saúde ou se foi diagnosticado com uma doença séria, pode se sentir confuso e assustado.
Busque profissionais que gastem saliva tentando simplificar as informações, que falem de igual para igual, sem jargões ou termos complexos e que façam prevenção e promoção da saúde. Isto é, que o compreendam como um todo, entendendo suas necessidades e suas expectativas e saibam indicar alternativas, como tratamentos não medicamentosos, mudanças no estilo de vida e um simples tempo de observação. Muitas vezes, é mais do que suficiente para que a pedra no rim percorra seu caminho em busca da luz sem intervenções cirúrgicas desnecessárias.
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*Luisa Portugal é médica formada pela Universidade Católica de Brasília, especialista em Medicina de Família e Comunidade.
Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do Estadão.