Por que o Brasil não vê o aborto como questão de saúde pública?

1 de setembro de 2020 5 mins. de leitura
Entenda as principais razões pelas quais o aborto no Brasil ainda é uma questão criminal, e não de saúde pública

O aborto está entre os temas mais delicados que perpassam o debate social. A questão envolve elementos legais, psicológicos, sociológicos, filosóficos e religiosos, razão pela qual é difícil chegar a consensos. Nos últimos dias, o assunto voltou à agenda pública em razão de uma decisão judicial que determinou o direito de uma menina de 10 anos de idade ao aborto. A criança engravidou após sofrer abuso sexual de um tio.

Conheça o Summit Saúde, um evento que reúne as maiores autoridades do Brasil nas áreas médica e hospitalar.

Conheça alguns dos aspectos que tangenciam a temática no contexto brasileiro e os principais desafios dessa questão, cuja discussão aponta para uma equação difícil do ponto de vista político.

Aspecto legal

Diversas entidades da sociedade civil opinaram sobre o destino do aborto no País em audiência no STF em 2018. (Fonte: STF/Reprodução)

Segundo o Código Penal, o aborto no Brasil é considerado crime. O decreto-lei prevê punição às mulheres que se submetem ao procedimento ou às pessoas que, com ou sem o consentimento da gestante, induzem-na ou auxiliam o abortamento. As exceções a essa normatização são três, permitindo ao Sistema Único de Saúde (SUS) administrar os cuidados necessários à mulher quando:

1. há risco à vida da mãe e não há outro meio de salvar a gestante;

2. a gravidez resulta de estupro e o aborto é consentido pela gestante ou, quando incapaz, por seu representante legal;

3. o feto é anencéfalo — esta última não é prevista pelo Código Penal, mas por um julgamento do Supremo Tribunal Federal de 2012 cujo entendimento vigora em relação a esses casos.

Segundo ativistas e pesquisadores que defendem descriminalizar o aborto e reconhecê-lo como problema de saúde pública, o Código Penal brasileiro data de 1940, promulgado sob o Estado Novo, período autoritário com inspiração fascista, no qual as mulheres estiveram apartadas do debate que culminou na legislação que completa oito décadas neste ano. Assim, não seria razoável que a tipologia do aborto continuasse a ser regulada por essa cultura legal, sobretudo diante de avanços sociais e democráticos que pedem outro tratamento para a questão.

Diante da inércia do Congresso brasileiro, que não normatiza o aborto a despeito da pressão de movimentos sociais, o Supremo Tribunal Federal iniciou em 2018 uma série de audiências públicas com vistas à pacificação do tema, que sofre contestação de matéria constitucional (ADPF 442). Caso isso ocorra, trata-se de um cenário semelhante à criminalização da homofobia e transfobia decidida pela corte em 2019, cujos efeitos legais passam a ser os mesmos da discriminação racial.

Debate político

Brasil pode mirar a experiência de outros países que também enfrentam o debate. (Fonte: GERARD BOTTINO / Shutterstock.)

Ainda segundo os defensores da descriminalização do aborto no Brasil, o desejo da mulher em cursar ou não a gestação deve ser respeitado e garantido como direito individual. Reconhece-se também o direito de segmentos religiosos se posicionarem contrários ao ato, mas, sendo o Estado laico, essa garantia não é suficiente para orientar o significado de vida para a legislação.

O Estado deve olhar para a questão, portanto, como um problema de saúde pública, sobretudo quando as mulheres mais pobres que decidem interromper a gestação vão à óbito sistematicamente no País — duas mulheres mortas a cada dia, segundo levantamento oficial.

Países que optaram por descriminalizar o aborto mostraram que os índices de atendimentos não cresceram. Em grande medida, esse fenômeno se explica porque, ao tratar a questão com políticas públicas específicas, abre-se uma janela para que as mulheres sejam informadas, orientadas e assistidas pelo Estado desde o planejamento familiar até a eventual interrupção da gravidez.

Do outro lado estão movimentos que se intitulam pró-vida e não concordam com o argumento de que, por não haver ainda a formação do sistema nervoso central, não há vida até 12 semanas de gestação. Essa é a posição que goza de maior consenso na comunidade científica, a exemplo do que defende o Conselho Federal de Medicina. Por questões que costumam ser de origem religiosa, entende-se que há vida desde a concepção, portanto a mulher que opta por interromper a gravidez deve ser tratada como alguém que encerra uma vida humana.

Há também defensores dessa posição que reivindicam argumentos do ponto de vista sociológico: haveria interesses de empresas estrangeiras que desejam fazer do abortamento um nicho de negócios diante da precariedade do SUS, segundo o movimento Brasil Sem Aborto. Embora esse entendimento esbarre no caráter laico do Estado, trata-se de uma queda de braço em que os setores religiosos mais tradicionais ainda têm força.

Acompanhe as notícias mais relevantes do setor pelo blog. Para saber mais, é só clicar aqui.

Fontes: Estadão, STF, Código Civil, Politica Aborto Humanizado, CFM.

70570cookie-checkPor que o Brasil não vê o aborto como questão de saúde pública?