Uso de dispositivos aumenta chance de consumir fast-food e ultraprocessados, segundo pesquisa realizada pela Federal de Santa Catarina com estudantes de 7 a 14 anos Por Gabriela Andrade e Kethilyn Mieza – editada por Mariana Collini em 05/12/2024 A exposição a celulares, tablets e computadores à noite prejudica a qualidade da alimentação de crianças e […]
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Uso de dispositivos aumenta chance de consumir fast-food e ultraprocessados, segundo pesquisa realizada pela Federal de Santa Catarina com estudantes de 7 a 14 anos
Por Gabriela Andrade e Kethilyn Mieza – editada por Mariana Collini em 05/12/2024
A exposição a celulares, tablets e computadores à noite prejudica a qualidade da alimentação de crianças e adolescentes, aumentando o risco de consumirem produtos ultraprocessados nesse período do dia. A constatação é de um estudo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizado com 1.396 alunos de escolas públicas e privadas de Florianópolis, com idades entre 7 a 14 anos. Além do consumo de alimentos menos saudáveis, o uso excessivo pode causar problemas de saúde mental, dizem psiquiatras e neurologistas.
De acordo com Denise Miguel Teixeira Roberto, uma das autoras da pesquisa, publicada em maio de 2024, esse hábito noturno pode estar relacionado com o ganho de peso. “O aumento do uso das telas é, sim, um comportamento que vem sendo associado ao aumento da obesidade”, afirma a nutricionista, que se dedica a estudar a relação entre telas, sono e alimentação nas novas gerações, com efeitos sobre a saúde física e psicológica. “Isso pode ser explicado, em parte, por maior tempo sedentário e maior chance de ter uma alimentação não saudável.”
Denise faz questão de lembrar, no entanto, que a obesidade é uma doença multifatorial. “Estudei vários fatores para saber os que mais têm impacto para causar obesidade em crianças e adolescentes. O próprio consumo das refeições muito tarde da noite, por exemplo.” Segundo ela, pesquisas sobre telas são mais recentes no Brasil, mas vêm sendo feitas nos Estados Unidos e em países da Europa ao longo dos últimos anos. Ela acredita que os resultados podem ajudar a induzir mudanças de comportamento e na legislação sobre o tema.
“Já se sabia que televisão e videogame fazem as pessoas ficarem mais sedentárias. Com as telas móveis, os estudos tiveram de se adaptar para ver se aqueles impactos também aconteciam. Os resultados estão mostrando que sim”, diz a pesquisadora. “Essa exposição excessiva causa diversas questões à nossa saúde, incluindo os hábitos alimentares.”
Consumo e saciedade
Na pesquisa da UFSC, a probabilidade de comer alimentos saudáveis diminuía quando aumentava o número de vezes em que o dispositivo era acessado ou os alunos viam mais de um aparelho, como celular e videogame. “Nossos resultados mostraram que usar telas três vezes ou mais foi associado com um maior consumo de ultraprocessados, como fast-food, pizza e hambúrguer, e o consumo frequente desses alimentos aumenta o risco para desenvolver sobrepeso e obesidade.”
“Sabe-se que o consumo de alimentos ultraprocessados ricos em gorduras, açúcares e sal estão relacionados com a obesidade. Então, se a chance de a criança consumir esse tipo de comida aumenta quando ela usa mais tela, isso se soma para aumentar o risco de obesidade.”
O trabalho também constatou outro aspecto afetado pelo hábito das telas à noite: a saciedade. “Nosso corpo dá sinais para comunicar a fome e a saciedade. Quando a gente não presta atenção no que está comendo de forma completa, esses sinais fisiológicos demoram para ser percebidos”, explica Denise.
“Usar telas três vezes ou mais foi associado com maior consumo de ultraprocessados, como fast-food, pizza e hambúrguer”, Denise Miguel Teixeira Roberto, nutricionista e pesquisadora da Federal de Santa Catarina
A assessora de comunicação Joyce Mattos percebeu que sua filha, Melina, de 7 anos, passou a comer mais produtos industrializados depois que ganhou um tablet, há cerca de um ano. “Normalmente, ofereço frutas, suco ou bolo, e ela aceita. Quando passa muito tempo na tela, começa a dizer que está com fome”, conta a mãe. “Ela busca biscoitos, come um pacote inteiro de uma vez e, às vezes, abre outro. Isso é algo que não faz habitualmente.”
Joyce conta que tentou evitar o contato tão cedo da filha com tecnologia, mas acabou cedendo, principalmente, em decorrência da demanda escolar e do ciclo social. “Eu tentei adiar ao máximo, mas foi inevitável. Fiquei até muito espantada porque na escola já era supercomum os colegas terem celular. Então, dei um tablet.”
Apesar de restringir o acesso a 20 minutos diários e de selecionar aplicativos educativos, Joyce notou que a filha passou a ficar mais estressada, com sensibilidade aflorada e uma necessidade de resposta imediata. Preocupada, buscou ajuda profissional. “A psicóloga disse que é mais um trabalho meu, como mãe, de controlar o uso das telas.”
Onde buscar ajuda gratuitamente
• CAPs
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) oferecem apoio e atendimento psicológico para pessoas com problemas de saúde mental. A assistência é voltada para a reabilitação psicossocial. Há várias unidades pelo País.
🌐 Acesse o site
• Instituto de Psiquiatria da USP
O Grupo de Dependências Tecnológicas do Programa Ambulatorial dos Transtornos do Impulso (Pro-Amiti) do Instituto de Psiquiatria da USP tem um canal de atendimento pelo WhatsApp: (11) 99004-6247.
🌐 Acesse o perfil no Instagram
Uso crescente da internet
A cada ano cresce o acesso de crianças e adolescentes à internet. O TIC Kids Online Brasil 2024, levantamento do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostrou que 85% das crianças e adolescentes brasileiros de 9 a 17 anos acessam a internet mais de uma vez por dia. Na edição de 2014, eram 21%. Nesse período, também aumentou a quantidade de crianças e adolescentes com celular, de 82% para 98% dos entrevistados.
Entre março e agosto de 2024, o estudo ouviu 2.424 crianças e adolescentes de 9 a 17 anos em todo o Brasil, junto com seus responsáveis. Realizado desde 2012, pela primeira vez o TIC Kids Online Brasil trouxe a frequência do uso para cada rede social. Mais da metade dos entrevistados acessa as redes sociais com muita frequência.
O WhatsApp é a plataforma predileta, utilizada por 70% dos participantes, sendo 53% várias vezes ao dia e 17% diariamente ou quase. YouTube, Instagram e TikTok vêm em seguida na preferência, usadas de modo intenso por 66%, 60% e 50%, respectivamente.
Dificuldade para regular as emoções
O contato prolongado com a internet afeta diretamente a qualidade de vida e causa impactos nocivos à saúde dessas novas gerações, alertam os especialistas. Na infância e na adolescência, o córtex pré-frontal – área do cérebro responsável pelas funções cognitivas e por outras como capacidade de julgamento, resolução de problemas e tomada de decisões – ainda está se formando, e isso não é simultâneo ao desenvolvimento do sistema límbico, que é estimulado pelas emoções.
“Há diversos estudos em curso que indicam que crianças expostas a telas desde muito cedo e de forma sistemática tendem a ser mais imediatistas, apresentam menos capacidade de adiamento de recompensa e de obtenção de prazer. Elas buscam gratificação a curto prazo e têm mais dificuldades de regulação emocional”, afirma a psiquiatra Gabriela Crenzel, especializada em crianças e adolescentes, que faz parte do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
De acordo com a psiquiatra, a compulsão por dispositivos digitais e outros comportamentos do uso problemático da internet já são apontados como situações patológicas consolidadas. “As evidências que vêm sendo observadas até o momento indicam menor conectividade entre as redes neurais que regulam a atenção e o controle cognitivo”, explica.
Gabriela destaca ainda outros problemas causados pelo uso excessivo de celulares, tablets e computadores por crianças e adolescentes, caso de distúrbios do sono em razão da longa exposição à luz azul, que atrapalha a liberação dos neurotransmissores relacionados ao sono.
Tempo máximo de tela por dia
Em qualquer idade, os especialistas não recomendam o acesso à internet ou a jogos durante as refeições. Também indicam se desconectar de 1 a 2 horas antes de dormir.
Antes de 2 anos:
• Sem exposição por completo. Uso não é indicado nem de forma passiva.
Entre 2 e 5 anos:
• Até 1 hora, sempre com supervisão de responsáveis ou cuidadores.
De 6 a 10 anos:
• Entre 1 e 2 horas, também com supervisão de responsáveis ou cuidadores.
Entre 11 e 18 anos:
• De 2 a 3 horas, sem virar a noite em jogos, por exemplo. Existe aumento dos riscos à saúde e dos problemas comportamentais quando o uso diário supera 4 ou 5 horas.
Fonte: Manual Menos Telas Mais Saúde (SBP)
No caso dos jogos, a mais recente revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11) incluiu na lista gaming disorder, ou transtorno causado por jogos eletrônicos. De acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), espera-se que a atualização entre em vigor no Brasil a partir de janeiro de 2025.
Mudanças na rotina
Para Lucas Rocha, psiquiatra da infância e adolescência do Instituto de Pesquisa (IPq) do Hospital das Clínicas da USP, o maior problema é a forma como as telas são usadas. Um jogo que exija movimentos corporais, segundo ele, pode ser menos danoso do que um jogo no formato MMORPG (do inglês Massively Multiplayer Online Role-Playing Game), no qual os jogadores interagem de forma online enquanto interpretam personagens usando apenas os teclados e os mouses dos computadores.
De acordo com o psiquiatra, para entender o que leva a criança ou o adolescente a passar tantas horas navegando na internet, é preciso envolver a casa inteira. “A família precisa melhorar a relação com a criança. Isso exige o tratamento de todos.”
Além de recorrer a um psicoterapeuta especializado em crianças e adolescentes, pais ou cuidadores precisam diminuir a exposição à internet, explicam os especialistas. E sempre é melhor o quanto antes começarem a negociar e a pôr em prática essa mudança no estilo de vida. “É muito mais difícil ‘sair’ do que ‘não entrar’ em certos comportamentos compulsivos, mas quanto mais novas forem as crianças é mais fácil de se reverter esses processos”, explica Gabriela.
Segundo a psiquiatra, crianças e adolescentes vêm se mantendo por muito tempo distraídos e passivos diante de tablets, computadores e celulares. “Responsáveis adultos, sejam seus familiares ou a escola e os profissionais de saúde envolvidos nos seus cuidados, podem estimular atividades criativas, esportivas e culturais e maior convívio com a natureza, a família e amigos offline. E a regulação do tempo de tela é indispensável.”
Restrição nas escolas
Uma das medidas adotadas para reduzir o excesso de telas foi a proibição do uso de celulares nas escolas em alguns pontos do País. O município do Rio de Janeiro está entre os primeiros a aprovar uma legislação para isso, no primeiro semestre deste ano. Após uma consulta pública em que 83% dos participantes concordaram com a restrição, o decreto assinado pelo prefeito Eduardo Paes (PSD) proibiu celulares em escolas da rede pública municipal, recomendando que os alunos guardem os aparelhos desligados ou em modo silencioso.
No Estado de São Paulo, o projeto de lei de autoria da deputada estadual Marina Helou (Rede) e coautoria de mais 40 parlamentares prevê que os estudantes não usem aparelhos eletrônicos com acesso à internet nas escolas, durante as aulas ou nos intervalos. A proposta foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) no início de novembro e, agora, depende de sanção do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Há, ainda, um projeto de lei nacional que propõe o uso de eletrônicos nas escolas apenas para fins pedagógicos ou didáticos sob orientação do professor, ou por questões de acessibilidade, inclusão e saúde. No fim de outubro, o texto do PL 104/2015 foi aprovado pela Comissão de Educação da Casa e seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça, para ser debatido e aprovado antes de ir para o Senado. / Colaborou Larissa Crippa
Foto: GettyImages