Avaliações negativas sobre a qualidade das graduações devem ser acompanhadas de planos de melhorias para as universidades e os alunos, diz ele Por Isabela Moya – editada por Mariana Collini em 14/05/2025 As avaliações dos cursos de Medicina precisam ter consequências mais claras para as faculdades, afirma Alexandre Holthausen, diretor-superintendente de Ensino do Instituto Israelita […]
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Avaliações negativas sobre a qualidade das graduações devem ser acompanhadas de planos de melhorias para as universidades e os alunos, diz ele
Por Isabela Moya – editada por Mariana Collini em 14/05/2025
As avaliações dos cursos de Medicina precisam ter consequências mais claras para as faculdades, afirma Alexandre Holthausen, diretor-superintendente de Ensino do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, faculdade ligada a um dos hospitais mais renomados do País.
Para o médico cardiologista, “tudo funciona a base de recompensa e punição” e, por isso, exames que mostrem resultados negativos sem um plano de correção de rotas são pouco eficientes. Ele defende, entre as punições, suspender novas turmas e até fechar cursos com notas baixas. “A gente tem de proteger o público porque, no fim do dia, os alunos terão o que buscam, que é um diploma, e quem fica desassistido nessa história é o paciente.”
O Enade de 2023, avaliação do Ministério da Educação (MEC) com resultados divulgados em abril, mostra que só 4 em cada 10 cursos de Medicina têm média 4 ou 5, consideradas ideais no Conceito Preliminar de Cursos (CPC). A nota máxima (5) só foi alcançada por 6 faculdades – a do Einstein é uma delas.
Para Holthausen, o Enade é insuficiente para medir a qualidade da formação médica no País, pois não abrange outros aspectos, como a formação humana e socioemocional, além de não ter tempo suficiente para avaliar os campos de estágio.
Além de consequências para as instituições, é preciso pensar nos estudantes. “Se um aluno é mal avaliado, preciso de um plano para ele. Como faço para que na próxima avaliação ele passe a ser melhor avaliado?”, diz.
“Se tem um açougue vendendo carne sem higiene, é justo fechar esse açougue? Acho que é. Se tem alguém que vende material de construção e este material está baixo de qualidade e as casas cairão na cabeça das pessoas, é justo que esse sujeito seja impedido de vender o material de construção. Quando começa a fazer esses paralelos e olha o que significa ter um indivíduo num hospital, começo a achar que faz sentido esse tipo de coisa”, observa.
O MEC tem como padrão supervisionar graduações que tiveram conceitos insatisfatórios na avaliação do MEC se a instituição não demonstrar, em até um ano, que superou as deficiências apontadas. Esse processo é passível de de medidas cautelares e penalidades, incluindo desativar o curso.
O número de cursos de Medicina aumentou significativamente nos últimos anos, especialmente no setor privado, por ter mensalidades caras e baixíssima inadimplência. Em 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a criação de cursos e vagas deve seguir as regras do programa Mais Médicos, que prioriza regiões com escassez de profissionais de saúde, dentre outros requisitos.
Para Holthausen, porém, as faculdades não devem ter a obrigação de fixar profissionais no interior, e a estratégia de abrir cursos em regiões remotas nem sempre é boa solução.
“Imaginar que eu vá formar médicos e aqueles médicos vão ficar naquele lugar e construir um sistema de saúde é um salto muito grande”, argumenta. “Há outros mecanismos para fixar médicos. Tem de oferecer condições para essas pessoas morarem nessas cidades.”
Veja os principais trechos da entrevista:
O Enade de 2023 mostrou resultado pior da área em relação ao ano anterior e 12% dos cursos de Medicina abaixo do considerado adequado pelo MEC. Qual a sua visão sobre a qualidade da formação médica?
Para avaliar um curso de Medicina ou qualquer curso superior, precisa olhar por vários ângulos. É importante entender que o Enade olha para um desses ângulos, para o desempenho de um conjunto de egressos em uma prova de conteúdo técnico feita em determinado momento. Para o aluno, embora exista obrigatoriedade da execução da prova, o resultado não afeta a vida dele. É diferente de ter um conjunto de alunos prestando uma prova na qual eles têm interesse na nota, como é o vestibular, por exemplo, ou uma prova de residência. Nesse sentido, precisa que os alunos tenham vontade de fazer a prova bem feita e que estejam bem formados. O Enade mede algo além da competência técnica, porque mede quanto aqueles alunos querem representar a escola, quanto estão satisfeitos com a carreira, a ligação com a escola, quão felizes foram durante os seis anos de Medicina. Mas o Enade para por aí, não mede outras coisas muito importantes para se avaliar um curso de Medicina. Precisa avaliar currículo, método de ensino, o sistema de avaliação dos alunos, o corpo docente, a infraestrutura, sala de aula, laboratórios, biblioteca, a disponibilidade e diversidade dos campos de estágios, se existe ou se não supervisão adequada, se os alunos realmente conseguem ter aprendizagem.
Em resumo, é uma situação complexa demais para ser avaliada apenas por uma prova, e posso falar isso tranquilamente porque o Einstein se posiciona muito bem na prova. Poderia simplesmente comemorar, mas é muito mais complexo.
Com base não só nas avaliações, mas o que é visto dos estudantes na prática, a qualidade do ensino realmente caiu nos últimos anos, como argumentam muitos médicos?
Nunca soubemos como era, de fato, a qualidade dos cursos de Medicina. Até a primeira década do ano 2000, quando tínhamos um número menor de cursos de Medicina e particularmente restrito a escolas públicas, era mais fácil avaliar. Agora são outros tempos: temos quase quatro centenas de cursos de Medicina, uma grande parte privados, e é muito difícil avaliar. Uma escola, em particular, pode causar grande benefício ou malefício, dependendo da sua qualidade ou falta dela. Temos carência de um sistema robusto de avaliação e acompanhamento das escolas médicas.
Que outras formas deveriam ser implementadas para avaliar esses outros aspectos do curso que o Enade não capta?
Temos boas ferramentas no papel. O próprio sistema de avaliação descrito é um bom sistema. A dificuldade é colocar isso em prática. O gigantismo do sistema educacional médico do Brasil impõe dificuldades grandes, mais de 300 escolas médicas a serem avaliadas, e um número restrito de avaliadores. A gente parece estar sempre correndo atrás da análise, o Enade que saiu agora é de 2023, então olhamos um retrato de um tempo passado, e isso vale para outras coisas avaliadas agora. Aí vem a pergunta: e o que a gente faz com essas avaliações? Qualquer que seja o resultado, aquilo deveria ter consequência. Se o indivíduo foi bem avaliado, o que significa? Se foi mal avaliado, o que significa? A gente precisa atrelar esse processo de avaliação das instituições do mesmo jeito que deve fazer para indivíduos com consequências. Se um aluno é mal avaliado, precisa de um plano para ele. Como faço para que na próxima avaliação ele passe a ser melhor avaliado?
O MEC anunciou recentemente o Enamed, que substitui o Enade para os estudantes de Medicina, e justamente ataca a necessidade de maior comprometimento com a prova, porque passam a usar a nota para entrar nas residências. É uma boa notícia?
Do ponto de vista de performance da prova como modelo de avaliação, é bom, porque teremos todas as escolas competindo, embora não seja uma competição, em condições de igualdade. Todos os alunos agora têm interesse em fazer a prova. Deixa de ser uma obrigatoriedade simplesmente para ter um carimbo atrás do diploma e a nota passa a ter valor. Na vida, tudo é recompensa ou punição. O sistema que oferece recompensa, oferece um estímulo adicional, então vejo com ótimos olhos, mas continua sendo uma prova. Avaliar o desempenho dos alunos nesta prova como reflexo do que faz a escola é parcialmente adequado, como disse. Há outras coisas para analisar, mas de toda forma, à medida que o aluno tem estímulo próprio para fazer a prova, é muito melhor. No vestibular, ele quer entrar na faculdade, põe grande empenho na prova. A partir disso, vamos ver uma elevação da nota média da prova no Brasil, porque temos esse estímulo adicional.
Como é uma boa formação médica?
O que é o padrão de um bom egresso de medicina? Nesta escola (a do Einstein), a gente enxerga que este egresso deva sair com sólido conteúdo técnico, generalista, que respeite os parâmetros das diretrizes curriculares nacionais, mas este é um componente técnico, por sinal, avaliado no Enade. Mas esperamos muito mais de um médico: que, ao longo dos seis anos, ele tenha desenvolvido um conjunto de competências, não necessariamente conteudistas. São de naturezas socioemocionais e que são tão ou mais importantes que o conhecimento técnico. E como avalio se não é através da prova de múltipla escolha? Aí volta o papel para as escolas, de como avaliam os seus alunos ao longo do curso, e o papel do MEC, de conseguir avaliar as escolas e capturar estas informações. Quando um paciente chega diante de um médico, espera e tem direito a bons desempenhos técnico e humano, até porque sem o desempenho humano não chegaremos na parte técnica.
Temos exemplos de métodos realizados em outros países que funcionam bem?
O sistema varia muito de país para país. Temos sistemas em que as escolas são avaliadas através dos seus alunos em provas periódicas, mas como os governos injetam dinheiro, avaliam produção científica, o alcance social, o papel dos alunos. No sistema alemão, por exemplo, os sistemas são escolas privadas de direito público e a esmagadora maioria dos recursos vem do governo. Eles têm provas federais feitas pelas escolas no 2º, 5º e 6º ano de curso. Já no sistema americano, as escolas são predominantemente privadas e precisam se sustentar através de mensalidade, mas o egresso precisa fazer as provas para praticar medicina. Se um grande número de egressos não tem desempenho, isso se reflete na interpretação da qualidade da escola e na procura dos alunos. O sistema se autoalimenta.
Quando olhar as ferramentas do MEC, no papel não vamos conseguir melhorar muito, já é bastante amplo. Se olhar as diretrizes curriculares vigentes, as diretrizes curriculares que estão sendo discutidas, o manual do avaliador de uma escola, não é ruim. O problema é como se coloca isso em prática num país tão grande, com tantas escolas. A gente está sempre secando o gelo, a minha impressão. Não acho que seja tanto uma mudança dos quesitos avaliados, porque o MEC avalia infraestrutura, corpo docente, desempenho dos alunos, programa, currículo etc, mas como colocar isso em prática.
A exceção está em um ponto ainda carente, tanto no ato autorizativo (para funcionamento do curso) quanto nas avaliações periódicas, quando a escola já está funcionando, que é a parte dos campos de estágio. Isso passou a ser mais importante ainda depois dessa abertura de grande número de escolas, sem necessariamente ter o lastro de campos de estágio hospitalares e extra hospitalares. Como avalia a pertinência, a quantidade, a qualidade, o grau de supervisão dos campos de estágio? E, nesse caso, há dificuldades adicionais, porque na esmagadora maioria das escolas o campo de estágio não pertence ou não é administrado pela escola – pode ser o SUS ou um hospital privado, mas isso não está sob o controle da escola. O MEC vem e avalia a escola, mas quem é que avalia o campo de estágio adequadamente? E essas avaliações duram cerca de dois dias, é bem difícil cobrir uma escola médica inteira em dois dias de avaliação. Existem coisas que precisa experimentar por mais tempo para fazer a avaliação. Um currículo pode ser avaliado (dessa forma), o método de ensino também, mas um campo de estágio demanda uma avaliação mais complexa, especialmente se o avaliador vai para uma cidade grande como São Paulo, Rio de Janeiro e os campos de estágio são espalhados. Às vezes ele vai ver um ou outro campo de estágio, mas aquela amostra não é representativa do que acontece e simplesmente olhar para um hospital e para uma enfermaria não garante que o avaliador consiga ver o que está acontecendo ali, então a gente precisa de mais mecanismos para avaliar campo de estágio. Nos outros aspectos, eu acho que a ferramenta, ao menos no papel, ela é boa; tem oportunidades de melhoria, mas ela não é ruim.
Saindo do campo de avaliação e entrando no ensino, quais são os principais desafios da formação médica?
Medicina é um conjunto de ciências com volume absurdo de conteúdo que muda a uma velocidade avassaladora. Não basta que o indivíduo consiga aprender muito. Ele precisa estar preparado para jogar fora aquilo que aprendeu e aprender uma coisa nova no lugar, às vezes uma oposta. É uma área que lida com pessoas o tempo todo. Embora o aluno vá nutrido com informações técnicas obtidas a partir de ciência, que usa médias de comportamentos, de valores das pessoas, quando ele está na frente de um paciente, aquele indivíduo é único. Ele precisa aprender um volume grande de conteúdo, desenvolver competências socioemocionais e, mais importante, estar preparado para ser autônomo, inclusive na aprendizagem a partir do momento que saiu das asas da faculdade, porque a Medicina vai continuar mudando. Só que agora não tem mais o anteparo de professores, coordenadores.
Como isso é feito na Faculdade de Medicina no Einstein?
A solução que encontramos aqui foi complexa, de difícil reprodução. Mas tem componentes aplicáveis a outros lugares. Não quero dizer que seja a única solução, mas funcionou bem para a gente. A gente tem um processo seletivo rígido dos alunos para encontrar a pessoa realmente vocacionada, academicamente sólida e que tenha a bússola, do ponto de vista de competências socioemocionais, apontada mais ou menos para a direção certa. E a gente consegue fazer isso não só por conta de qualidades nossas, mas porque a relação candidato-vaga nessa escola é alta, então posso ser seletivo. Uma vez esse aluno aqui, ele entra em contato com um corpo docente escolhido a dedo e diverso. Não posso ter indivíduos todos do mesmo tipo, preciso ter uma estratégia de montagem desse corpo docente para que tenha todas as competências necessárias, não num único indivíduo repetidas vezes, mas indivíduos distintos. Depois vem a parte apresentada ao MEC, num formato de projeto pedagógico de curso, mas que precisa ser, além de bem refletida, bem implementada e vivida. Método de ensino, currículo, escolha dos momentos dos estágios, integração entre as disciplinas. Quando são desintegradas, os alunos memorizam coisas para fazer provas, mas não aprenderam de fato conceitos serão úteis na vida prática. Em infraestrutura, existem componentes básicos: sala de aula com espaço, temperatura, iluminação, silêncio, bons laboratórios que realmente sirvam para que o aluno aprenda o necessário, acesso a bases de dados, livros.
E a parte prática?
Precisa ter campo de estágio em quantidade e qualidade suficientes, supervisão adequada, ver em que momento vai expor o aluno a cada um dos contextos. Tudo isso tem um plano por trás e não basta escrever isso num documento, precisa acompanhar. A gente tem um sistema de avaliação e correção em tempo real, o tempo todo avalia e conserta. A gente avalia o aluno o tempo todo de várias formas. Ele é avaliado pelos docentes, pelos pares, pelos enfermeiros, pelos técnicos, pelos médicos, que não são da faculdade, mas envolvem o aluno no campo de prática. E a gente faz isso não para gerar uma nota , mas para dar um feedback e dizer “você está assim, a gente esperava que estivesse ‘assado’ e esse é o seu plano para o próximo semestre”. E não pode sair de cima, tem de ficar o tempo todo avaliando se essas coisas estão funcionando. Afinal de contas, estamos falando de educação. O mesmo vale para um professor. A gente recruta um professor pelas competências que ele demonstrou em um processo seletivo. Preciso ver se aquelas competências vão se manifestar ao longo do curso. E ele é humano, assim como o aluno, ele vai ter lá os seus problemas. E a gente precisa abordar o professor e fazer da mesma forma que faz com o aluno. Precisa de um sistema continuado de formação.
Como desenvolver as competências socioemocionais que um médico precisa?
Temos um conjunto de coisas que fazem com que o aluno desenvolva o seu intelecto e esteja preparado para ser humano com as pessoas, esse sujeito curioso, que quer continuar aprendendo. Temos um robusto programa de pesquisa, estímulo a atividades sociais, atividades de voluntariado, atividades filantrópicas. Eles abraçaram isso de forma vigorosa. Temos alternativas para esses alunos se engajarem em programas dentro da instituição de gestão, de vivências, que fazem com que esses alunos enxerguem outros mundos. Mesmo com carga tão pesada, ainda colocamos coisas adicionais. E a gente precisa garantir que esse aluno tenha tempo para estudar, namorar, praticar esportes, dormir, comer bem. No nosso currículo, a gente jogou coisas fora, que habitualmente estão em outros cursos, passou muito tempo escolhendo o que realmente era essencial, para sobrar tempo para o aluno e o professor fazerem essas outras coisas.
Como selecionam o que não é essencial e ter tempo para atividades práticas?
É comum que o currículo seja montado como colcha de retalho. Se pegar o que cada professor imagina que deva ser o seu currículo e somar essas coisas, no fim teremos um currículo enorme e não há tempo para nada. A gente fez de um jeito diferente: senta com um conjunto de professores e faz a pergunta: qual é a essência? Quando a gente chega a essa resposta, verá que olhando esses múltiplos currículos individuais de cada professor, tem uma série de sobreposições, coisas ultraespecializadas e que deveriam ser dadas só na residência, coisas pelas quais os professores são verdadeiramente apaixonados porque é a linha de pesquisa deles, mas aquilo não faz sentido para um aluno. Tem conteúdos que posso aplicar com diferentes níveis de densidade, não preciso ir até o fim e posso ensinar aquilo com nível de densidade menor. A gente colocou mais atividade prática em campo de estágio, horas que a gente chama de “verdes”, que são horas que o aluno precisa estar na faculdade, mas consegue fazer estudo dirigido, iniciação científica, atividade de mentoria, de tutoria. São atividades acadêmicas, mas não precisa estar preso na sala de aula naquele momento.
Falando sobre a parte humana, vemos com frequência notícias envolvendo estudantes, muitas vezes de Medicina, e o mau exercício da profissão, às vezes até relacionadas a crimes. A Medicina lida com a vida humana e precisa de ética. Há deficiência do ensino da ética da profissão nas faculdades? Como resolver isso?
A gente aprende estudando ou através de exemplos. Num mundo perfeito, aprende conjugando teoria e prática. A teoria sem a prática é vazia, a prática sem a teoria é perigosa. Existe a ética que é de aplicação geral e uma parte da ética de aplicação específica da medicina. Imaginar que um aluno chegue sabendo isso é o mesmo que imaginar que ele chega sabendo cardiologia, infectologia ou cirurgia. Temos um eixo que perpassa a maior parte da primeira metade do curso, o eixo de humanidades. Eles discutem ética, moral, cidadania, a parte social, valores, praticam isso na sala de aula num ambiente com segurança psicológica, supervisionados, guiados por pessoas que são exemplos nessas áreas.
E existe o currículo oculto. Não adianta nada fazer uma coisa dentro da sala de aula e o aluno vai para a prática e vê um mundo completamente diferente. A gente busca expor esse aluno a exemplos práticos vencedores. Toda vez que vai fazer um programa, seleciona pessoas que não sejam apenas boas do ponto de vista técnico, mas que tenham histórico de uma prática adequada da medicina, inclusive no aspecto ético.
Outro componente é fazer com que o aluno procure coisas que fortaleçam esse lado: o trabalho voluntário, social, o engajamento com as famílias nos campos de estágio.
Uma crítica frequentemente feita é sobre a existência de um grande número de faculdades de Medicina. Houve aumento rápido , e alguns profissionais atribuem uma má qualidade da formação médica a esse aumento. Essa relação faz sentido?
Não consigo julgar como está o ensino médico no Brasil em termos gerais, sequer é meu papel, não tenho ferramentas para isso. Mas quando aumenta a quantidade – e tem documentação de que há necessidade de aumentar a quantidade – ainda assim tem de plugar essa necessidade com um projeto de qualidade. E acho que isso não acontece. Falando de probabilidade, existe chance maior de uma escola que não seja boa aparecer quando tem um sistema que privilegia a quantidade e não tem todas as ferramentas necessárias para avaliar a qualidade.
Outro ponto é imaginar que a criação da escola médica deva ser indutor para desenvolver um sistema de saúde local. A gente não consegue provar isso. Em um lugar com carência de sistema de saúde, colocar uma escola médica lá e imaginar que o sistema de saúde vá se desenvolver por isso, é um salto grande.
Esse é justamente um dos objetivos do programa Mais Médicos do governo federal. Você acredita que não funciona?
É um dos objetivos, e a gente consegue demonstrar isso em alguns lugares, mas numa grande parte dos lugares é bem difícil de demonstrar isso, pelo menos na velocidade com que isso foi feito. Imaginar que eu pego um lugar muito mal servido, do ponto de vista de quantidade ou qualidade, que eu coloque uma escola médica e aquilo vá fixar professores, médicos, desenvolver o sistema de saúde local, é um salto grande para acreditar que isso esteja acontecendo. Não tenho medido isso; já vi diferentes entidades que mediram e conseguem demonstrar que sim, que não, e talvez. Quando a gente olha as quase 400 escolas, vamos encontrar exemplos nos quais isso aconteceu e pode ser demonstrado, mas também vários exemplos de que isso não tenha acontecido. Mas acho que isso não seja necessariamente verdade.
Quais outras formas são efetivas para trazer um bom sistema de saúde para esses locais distantes dos grandes centros, onde não há boa infraestrutura, hospitais e quantidade adequada de médicos por habitantes?
Primeiramente, não é responsabilidade de uma escola médica, na maioria dos lugares do mundo, desenvolver o sistema de saúde local. Nós temos um sistema universal de saúde (o SUS), então ele deve prover. Não digo que as escolas médicas não devam ser partícipes, elas devem, inclusive, porque fazem uso de uma prerrogativa concedida pelo sistema público do direito de ensinar e do direito às vagas. E grande parte delas se beneficia financeiramente disso, então não isento o papel das escolas. Mas elas têm papel secundário. O papel primário é do gestor local e do gestor central de saúde.
Mas ainda que os médicos, após formados, não continuem nessas cidades, durante o período de internato da faculdade, os estudantes atuam naquele sistema de saúde, o que, por si só, já ajuda regiões pouco abastecidas, certo? É possível também construir residências médicas para fixar os profissionais.
Isso em um contexto em que tenho lugar para o internato e condições para uma residência médica, os campos de estágio e pacientes. Se tenho um lugar que tem hospital ou hospitais com número de leitos adequado e UBS (unidade básica de saúde), é uma cidade à espera de um curso de Medicina. Talvez seja uma cidade à espera de uma residência. E já está demonstrado que onde o indivíduo fez a residência tem maior propensão a ficar naquele lugar. Mas aí preciso ter o campo de estágio, o sistema para que ele possa aprender. Não posso ter interno se ele não tem onde fazer o internato, se não tem médico suficiente para ensiná-lo. Uma residência médica pressupõe que eu tenha quantidade e variedade de casos para que esse indivíduo possa aprender aquela especialidade. O primeiro passo é: como fixar professores. E se a distância entre onde está situada a faculdade e o campo de prática é grande, não vai acontecer, o aluno não vai dirigir por horas até chegar num hospital.
Há outros mecanismos para fixar médicos: oferecer condições para essas pessoas morarem nessas cidades. Como vou colocar engenheiros num lugar que não tem obras? Professores num lugar que não tem escola? Ou não tem aluno?
Seria viável criar um programa federal de carreira médica, assim como existe para o magistrado?
Para qualquer coisa na vida, tudo funciona com punição ou recompensa. Oferecendo as recompensas adequadas, a gente consegue motivar as pessoas. É importante entender que a recompensa não é só pecuniária. Se quero fixar uma pessoa e ela precisa trabalhar muitos anos num lugar, aquele lugar precisa ser uma escolha melhor do que o lugar que está concorrendo. A vida da pessoa precisa ser boa naquele lugar, precisa ter pacientes, sentir que tem condições de resolver (os problemas dos pacientes), ter acesso a exame, a remédio. Caso contrário, é melhor fazer diferente: montar um sistema em um lugar central e trazer os pacientes. Numa cidade pequena não faz sentido ter um hospital, mas pode ter uma unidade básica de saúde bem organizada, que atenda um conjunto de pequenos bairros, um município pequeno ou mais de um município. Às vezes, é mais fácil resolver um problema de transporte, porque, no fim do dia, ao fixar um profissional, ele vai criar a família dele. Onde é que o filho dele vai estudar? Onde é que o cônjuge vai trabalhar? Fixar não pode ser simplesmente: ‘te pago e você vai’. Isso funciona por um período curto de tempo, mas não vai deixar marcas. Não terá verdadeiramente fixação.
Os problemas de saúde no Brasil não serão resolvidos apenas com médicos. Uma grande parte dos problemas não precisa nem do médico para resolver, pode ser resolvido por um enfermeiro, um técnico, um agente comunitário. Claro que o médico é uma figura superimportante no sistema de saúde, mas não é a única. A gente fala não só da escola médica. Tem de falar da escola de enfermagem, de fisioterapia, de nutrição, de psicologia, de gestores de saúde.
Há um projeto de lei para instituir um exame posterior à formação do médico, como uma “OAB da medicina”, que, em teoria, cumpriria esse papel de avaliar a qualidade do profissional formado. É uma boa solução?
Vamos assumir, por exemplo, que o CFM (Conselho Federal de Medicina) ou qualquer outra instituição consiga montar uma prova que avalia a qualidade do médico na sua amplitude. Estabelece um mecanismo de proteção da população e isso é superválido, mas isso não dá conta da qualidade do médico que vem sendo formado. Precisa, depois de toda avaliação, de um plano para consertar o que deu errado. A prova por si só não resolve isso.
Só colocar uma prova, me parece insuficiente. Precisa investir nas escolas, e do ponto de vista do regulador, precisa regular as escolas. A partir do momento que forma um indivíduo de uma profissão de utilidade pública e de risco, a gente deve olhar para o médico, piloto de avião, o sujeito que constrói pontes. Essas profissões têm potencial de dano à população grande. Continua precisando da interveniência durante o curso. Lacunas identificadas no aluno precisam ser tratadas no indivíduo e aquelas identificadas no grupo de alunos, devem ser tratadas na faculdade. Precisa que tenha consequência ou simplesmente criaremos uma trava e diremos: ‘daqui você não passa’. E vai ter aquele monte de gente que entrou na escola mas não consegue sair.
O que fazer com o médico mal formado?
Precisa investir em informação, podia passar outro tanto desse que estamos conversando, falando de residência médica e de formação após a graduação. Não posso cruzar os braços e dizer: ‘paciência, já formamos, eles não têm qualidade e agora que o tempo dê conta disso?’ A gente precisa ter mecanismos para continuar formando esses indivíduos. Não acho que tenha os mecanismos que garantam a interiorização e que garantam a qualidade, a formação adicional desses indivíduos.
E com as faculdades mal avaliadas, o que fazer? Fechar? Impedir que abram mais vagas?
O direito de existir, o direito de pôr mais alunos pra dentro, gera aquela discussão: uma escola médica deve ser regida pela lei de mercado ou ter vigilância governamental? Você prefere entrar num avião em que o piloto realmente seja certificado ou foi o que ocupou aquela vaga? Tenho certeza da resposta. Fechar escola que não apresenta um nível satisfatório é uma solução? Não acho ruim a ideia. Sempre que tenho essas perguntas que parecem ser difíceis, olho para outras coisas da vida: se tem um açougue vendendo carne sem higiene, é justo fechar esse açougue? Acho que é. Se tem alguém que vende material de construção e este material está baixo de qualidade e as casas vão cair na cabeça das pessoas, é justo que esse sujeito seja impedido de vender o material de construção? Quando começa a fazer esses paralelos e olha o que significa ter um indivíduo em num hospital, começo a achar que faz sentido esse tipo de coisa.
Aí depois vem a próxima pergunta: onde coloco a barra? Quem fica aberto sem medidas corretivas, quem fica aberto com medidas corretivas e quem precisa fechar? O que fazer com os alunos que estão lá no meio? Fecha a entrada de novos alunos e empurra estes que já estão lá dentro para a formação com medidas corretivas. Tem de proteger o público, porque no fim do dia, os alunos vão ter o que buscam, que é um diploma, e quem fica desassistido nessa história é o paciente.
Há um déficit de vagas em residências médicas em relação ao número de formados, o que abriu espaço para grande crescimento de pós-graduações médicas, que não têm, como na graduação, um sistema de avaliação. Qual a sua visão sobre este cenário?
No Brasil e no mundo, a residência ou um equivalente é o padrão-ouro de especialização. No Brasil, a residência assume papel ainda mais importante por ter muito curso, muito médico e nem sempre a qualidade necessária. Deveria ter muito mais vagas de residência. Num mundo ideal, a gente deveria ter vagas, se não para todo mundo, mas para quase todo mundo. E seria, inclusive, um jeito compensatório em relação a esses profissionais que saíram da faculdade e não são bem formados. Há menos barreiras e é bem menos difícil abrir uma residência do que abrir uma escola médica, que precisa de muito mais coisa. Do ponto de vista econômico, é bem menos custoso abrir residência. A gente salva recursos no curto prazo abrindo residência. Isso não vai atacar, necessariamente, aquele problema da interiorização dos médicos. Certamente vai atacar, pelo menos parcialmente, o problema da insuficiência de qualidade, da qualidade incompleta.
Já com relação à discussão de pós-graduação versus residência, do ponto de vista quantitativo, as pós-graduações têm um mínimo de 360 horas, enquanto a residência tem 3, 4 mil horas. Onde vai aprender mais? As pós-graduações são, predominantemente, teóricas, para preencher uma lacuna de conhecimento teórico. Elas têm algum componente de prática, mas a residência tem aprendizagem e serviço, milhares de horas e, pelo menos, 80% de atividade prática. Não são comparáveis. Onde é que realmente forma um médico especialista? É na residência.
Um hospital que tem residente melhora de qualidade no médio e no longo prazo. Inclusive, para servir como campo de estágio para as escolas médicas. Um lugar que tem residência fica mais bem estruturado para receber e supervisionar alunos.
Qual é a dificuldade para construir uma residência? Porque apesar de mais fácil e mais barato, ainda existem poucas vagas.
O residente não paga, ele recebe. Não tem o estímulo que tem uma escola médica, que é um aluno pagando. Então, tem uma limitação financeira. Precisa de um conjunto de hospitais e ou ambientes extra-hospitalares para acomodar essas pessoas, mas também as pessoas lá precisam querer abrir essas residências. Eu acho que muitos lugares acabam não abrindo residência, inclusive porque não sabem que podem, não sabem como fazê-lo. Precisaria ter algum tipo de estímulo, de incentivo, inclusive do ponto de vista de consultorias no próprio governo ou de entidades que têm residência, para que entendam onde é possível abrir uma boa residência. O bom da residência é que a gente pode abrir de vários tamanhos. Eu posso ter uma com duas vagas ou uma com dez vagas. Eu posso ter um hospital que tem um programa, posso ter um hospital que tem cinco programas diferentes. É muito maleável, muito flexível. A residência, ao contrário da escola médica, se acopla ao tamanho do lugar.
Foto: Taba Benedicto/ Estadão