Aprovação gera polêmica entre médicos e agências reguladoras; entenda Por Leon Ferrari – editada por Mariana Collini em 24/04/2025 A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o Kisunla (donanemabe), medicamento da farmacêutica Eli Lilly que promete retardar o avanço do Alzheimer. É a primeira terapia do tipo que ganha sinal verde da Anvisa. A […]
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Aprovação gera polêmica entre médicos e agências reguladoras; entenda
Por Leon Ferrari – editada por Mariana Collini em 24/04/2025
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o Kisunla (donanemabe), medicamento da farmacêutica Eli Lilly que promete retardar o avanço do Alzheimer. É a primeira terapia do tipo que ganha sinal verde da Anvisa. A publicação da autorização ocorreu na edição de quinta-feira, 17, do Diário Oficial da União.
O medicamento injetável, administrado uma vez por mês, é indicado para pacientes com diagnóstico de Alzheimer no estágio inicial da doença, isto inclui aqueles com comprometimento cognitivo leve (pacientes que apresentam desempenho cognitivo abaixo da média, mas sem perda da funcionalidade) ou com demência na fase leve (aqui, além do declínio cognitivo, há perda de funcionalidade).
O tratamento não é indicado para alguns tipos de pacientes, como os que são homozigotos da variante ε4 do gene APOE – situação identificada por exames genéticos –, quem faz uso de anticoagulantes ou aqueles com diagnóstico de angiopatia amiloide cerebral (AAC) na ressonância magnética antes de iniciar o tratamento. Em todas essas circunstâncias, há risco aumentado de edema e sangramento.
O medicamento já foi aprovado em diversos países, inclusive nos Estados Unidos, onde recebeu aval da Food and Drug Administration (FDA) em julho do ano passado. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) recusou a autorização de comercialização do Kisunla na União Europeia em março deste ano. A Lilly pediu uma reavaliação do parecer em abril.
Na avaliação da EMA, os benefícios do Kisunla não foram significativos o suficiente para compensar os riscos relacionados ao desenvolvimento de um inchaço (edema) no cérebro, um efeito colateral conhecido como ARIA e que só é detectado via ressonância magnética — na maioria dos casos, a condição é assintomática, mas é potencialmente perigosa.
Segundo a EMA, a ARIA ocorreu em 36,8% das pessoas que receberam Kisunla, em comparação com 14,9% das pessoas que usaram um placebo. Em análises adicionais, excluindo pacientes com o risco aumentado para a condição (aqueles que apresentam a variante da APOE), a ARIA ocorreu em 24,7% das pessoas que receberam o medicamento, em comparação com 12% do grupo placebo.
Ao Estadão, a Anvisa informou que as reações adversas mais comuns do medicamento são relacionadas à infusão, que pode causar febre e sintomas semelhantes aos da gripe, além de dor de cabeça e ARIA — na nota, a agência citou os dados destacados também pela EMA.
Como acontece com qualquer medicamento, a Anvisa irá monitorar a segurança e a efetividade do donanemabe sob rigorosa análise. Serão implementadas atividades de minimização de risco para o donanemabe em conformidade com Plano de Minimização de Riscos aprovado.
O medicamento ainda precisa passar pelo processo de precificação junto à Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), da Anvisa. A Lilly informou que ainda não há data definida para a comercialização do Kisunla no Brasil.
Sem euforia
A geriatra Claudia Kimie Suemoto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), avalia que a aprovação é uma notícia boa, no entanto, destaca que está longe de justificar uma euforia. Isso porque, considerando todos os poréns envolvidos na indicação, poucos pacientes devem se beneficiar. “No final, quando você selecionar os pacientes que realmente têm doença de Alzheimer e que são elegíveis a tomar a droga, vai sobrar pouca gente. É uma minoria”, diz. “E é muito importante que os pacientes sejam bem selecionados”, reforça.
De acordo com ela, nos estudos, a melhora dos pacientes do ponto de vista cognitivo e até mesmo funcional foi “muito modesta”. Mesmo assim, ela acredita que haja motivos para celebrar. “Temos que comemorar o avanço da ciência.”
Mychael Lourenço, professor do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que pesquisa a doença e é apoiado pelo Instituto Serrapilheira, também comemora o avanço científico. “A aprovação é um marco”, diz. “É importante porque coloca o Brasil na mesma linha, na mesma direção, de outros países, como os Estados Unidos.”
“Os resultados do donanemabe são positivos. São a melhor coisa que nós já tivemos até o momento”, afirma. Ele pondera, porém, que um número restrito de pacientes se beneficiará do medicamento e que é preciso ter cuidado para não criar a falsa esperança de que “resolvemos o problema” ou investir “todas as fichas” no Kisunla. “Estamos longe de um remédio que cure a doença, mas existe um otimismo com a geração cada vez melhor de medicamentos”.
Reconhecido internacionalmente por suas contribuições na pesquisa sobre o Alzheimer, o neurologista Ricardo Nitrini, por sua vez, lamenta a aprovação pela Anvisa e se diz muito preocupado. “O medicamento teve um efeito estatisticamente significativo (nas pesquisas). Mas não atingiu aquilo que seria o efeito clínico minimamente significativo, ou seja, que pudesse ser percebido pelo paciente, pelos familiares ou pelo médico”, avalia.
“É um remédio com muitos efeitos colaterais, alguns potencialmente graves. Isso preocupa de tal maneira que todo paciente que toma tem de ser monitorado com ressonâncias magnéticas frequentes, porque podem ocorrer eventos adversos. Não são comuns, mas podem acontecer efeitos até fatais”, completa.
Dados
Os dados que embasaram a decisão, de acordo com a Lilly, foram de um estudo que acompanhou pacientes durante 18 meses. Além do placebo, os testes foram conduzidos com outros dois grupos: um que estava menos avançado em sua doença e a população geral do estudo.
Os resultados colhidos sugerem que o donanemabe retardou o declínio clínico em 35% nos pacientes com a doença menos avançada, e em 22% na população geral. Entre os dois grupos analisados, os participantes tratados com o medicamento apresentaram um risco até 39% menor de progredir para o próximo estágio clínico da doença, segundo a Lilly.
Nitrini, porém, questiona a maneira como os dados têm sido apresentados. Uma das medidas usadas nos estudos foi o desempenho dos pacientes em um teste neuropsicológico, a Escala Integrada de Avaliação da Doença de Alzheimer (iADRS), que avalia o grau do comprometimento cognitivo. “Ambos os pacientes, que tomaram e não tomaram o remédio, continuaram a declinar, mas os pacientes que tomaram pioraram um pouco menos”, conta ele. “Mas o efeito foi pequeno”.
Para o médico, o problema é que a farmacêutica tem dado a entender que o efeito foi maior do que o realmente captado. “Eles têm dito que, para quem tomou o donanemabe, houve uma uma diferença de 22% na velocidade de progressão (da doença). Parece importante, mas não é correto apresentar desse jeito”, afirma.
“Vamos dizer assim: um indivíduo tomou remédio para emagrecer e o outro não. Depois de seis meses, o que tomou o remédio perdeu 2 kg e o que não tomou perdeu 1 kg. Aí dizem que a perda foi 100% maior. É transformar um número muito pequeno em algo que parece muito grande”, explica.
Outras métricas, como o tamanho de efeito (que mostra o quanto um tratamento realmente muda o estado de saúde de um paciente) e o número necessário de pacientes para tratar para que um melhore (NNT), seriam mais adequadas, de acordo com Nitrini.
Como o donanemabe funciona?
A causa do Alzheimer ainda não é clara, mas já se sabe que a doença se instala quando o processamento de certas proteínas começa a dar errado. Surgem fragmentos de proteínas mal cortadas e tóxicas dentro dos neurônios e nos espaços entre eles, formando placas (lesões). Como nosso corpo falha em eliminá-las, elas se acumulam no cérebro.
Duas proteínas são marca da enfermidade: a beta-amiloide e a tau. Segundo os especialistas, a beta-amiloide parece se acumular primeiro na forma de lesões extracelulares, em volta dos neurônios. Com o progredir da doença, ela desencadearia a deposição da proteína tau em lesões intracelulares, levando à morte neuronal.
Segundo Claudia, o papel do anticorpo monoclonal donanemabe é ligar-se à beta-amiloide depositada e removê-la. Para isso, ele parece bastante eficiente, de acordo com especialistas, assim como também têm se mostrado outras drogas do mesmo tipo.
A grande questão é a tradução clínica disso, ou seja, a desaceleração na progressão do declínio cognitivo — que tem sido bastante modesta.
Quem vai poder usar o donanemabe?
O diagnóstico de Alzheimer não é simples. O passo inicial depende da reclamação do paciente (ou de quem convive com ele) sobre sintomas como falhas na memória. A partir daí, o médico pede testes neuropsicológicos para determinar se há declínio cognitivo (prejuízos na capacidade de processar pensamentos) em comparação com indivíduos de mesma idade e escolaridade. Com isso, é possível dizer se a pessoa tem ou não demência.
O próximo passo é descobrir a causa da demência. Nessa fase, o médico pode pedir exames laboratoriais e de imagem para descartar outras causas e fechar um diagnóstico presuntivo de Alzheimer. Ele pode ainda solicitar exames de biomarcadores – elementos presentes no organismo que sugerem a ocorrência de determinada doença. Os mais utilizados são o PET amiloide (um exame de imagem) e o exame do líquor.
O primeiro, além de custar cerca de R$ 9 mil, é oferecido por poucos centros médicos no Brasil. O segundo é um procedimento considerado invasivo, pois depende de punção na lombar — uma agulha é usada para coletar o líquido da medula espinhal — e custa aproximadamente R$ 3,5 mil.
“Essa limitação diagnóstica é um problema grave”, fala Claudia. No caso da prescrição do donanemabe, ainda será necessário ao menos mais um exame, o teste genético para detectar a variante do APOE.
Falta de diversidade
Uma das críticas aos testes clínicos do donanemabe é o fato de que, como muitos medicamentos, foram feitos apenas com populações do Hemisfério Norte. Com isso, há uma sub-representação de pessoas negras e latinas — nos EUA, inclusive, essas populações têm mais chance de desenvolver a doença do que pessoas brancas.
A aprovação no Brasil, de acordo com Claudia, vai ajudar com mais dados, esses de mundo real, na chamada fase 4 dos estudos. “Vamos ter que aprender na prática.”
Foto: Vitalii Vodolazskyi/Adobe Stock